- 14 Nov 2015, 00:59
#966319
André Luiz dos Santos (Formando em Enga. Química - EPUSP)
A cola é uma daquelas práticas amplamente disseminadas, mas cuja importância é esquecida e não levada em conta. Sem dúvida é um assunto ingrato, freqüentemente vemos moralistas se levantarem e inibir a discussão franca com sofismas de uma educação ideal. Contudo não podemos tratar como um tabu e tentarmos esconder de nós mesmos os motivos que levam à cola dentro das faculdades, motivos sérios que contestam muitos conceitos tradicionais ainda aplicados à educação superior.
A grande questão que se levanta é: A cola afeta a formação do aluno, mascarando sua incapacidade e produzindo um mau profissional, no caso um engenheiro químico inadequado para o exercício de sua arte?
A luz dos meus seis anos de curso de engenharia química posso me arriscar a conjecturar algumas causas. Neste breve ensaio, tento analisar as causas da cola, a economia de cola entre os alunos, as táticas e por fim, a conclusão que tirei da minha experiência. numa contribuição generalizada, empírica e não sistemática para o início de uma discussão mais ampla.
A moralidade intrínseca da Cola: o descrédito das provas
Estou plenamente convencido de que a cola tanto aumenta quanto maior é o descrédito do aluno pela prova. A cola justamente contesta o sistema de avaliação de provas, sobre o qual debruça-se grande parte de nosso ensino. A prova é uma avaliação das capacidades individuais do aluno entregue aos seus próprios conhecimentos. A cola perverte essa avaliação, suprindo o aluno por outras fontes.
O aluno já sabe que a carreira de engenheiro é imensamente diferente de uma prova, daí seu ceticismo. Um problema real não possui nem sequer a sombra de semelhança com uma avaliação de faculdade. O engenheiro trabalha em equipe, possui a sua disposição consulta a literatura, estará livre para pensar em várias soluções, e sempre haverá revisões de seu trabalho final. Sua ferramenta é a capacidade de análise, não a memória. Em contrapartida, o ambiente de uma prova é artificial: Ser cobrado em duas horas a fazer manipulações complexas e específicas de matérias extensas, enclausurado e incomunicável preso numa carteira nem sempre confortável sob a vigilância de alguém pronto a suspeitar de seus menores movimentos. E a correção posterior não é mais justa, pressupõe a pergunta: “O aluno teve capacidade de guardar (não importa se decorado e memorizado ou aprendido e assimilado) a resolução destes n exercícios dos quais uma fração nem sempre amostral lhe será cobrada totalizando um índice de desempenho de 0 a 10?”.
Essa contestação vem desde o estudo. “Estudar para a prova” é uma grande elocubração, verdadeiramente forçar nos dias que antecedem o teste conhecimento no cérebro para demonstrá-lo na prova. Depois, se algo não for esquecido, tanto maior o lucro. E a isto se chama aprendizado. Verdadeiramente uma osmose reversa, usa-se uma pressão artificial e mecânica para fazer algum conhecimento penetrar na mente quando o contrário é o natural. Se permitem uma experiência minha, não me lembro de haver aprendido menos nas matérias sem prova (cuja avaliação era feita pela presença e trabalhos, com eventualmente alguma breve provinha) do que nas exaustivas sessões de esgotamento e desestímulo que antecediam a grandes provas de disciplinas pesadíssimas.
Daí ser a cola um assunto tão espinhoso. Porque invariavelmente quem cola já está tendo um juízo de valores sobre o modo de avaliação de uma prova. Verdadeiramente o aluno que cola tem certeza de que em nada seu desempenho profissional será afetado por fraudar sua performance numa prova. Pelo contrário, um exercício mal estudado ou um esquecimento por nervosismo pode causar uma reprovação numa disciplina chave (seja por efeito de pré-requisito, ou conflito de horários) e efetivamente atrasar uma colação de grau, realmente provocando sérios prejuízos profissionais. Não é nobreza nenhuma perder um precioso ano de carreira por um falso pudor em não colar.
Por outro lado, verdadeiramente um sistema de avaliação baseado meramente em notas estimula o vale-tudo nas provas, daí a cola. Um ciclo do qual a cola é conseqüência dupla: para quem não acredita que a avaliação funcione, a cola engana uma avaliação enganadora, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Pelo contrário, para quem acredita que seus méritos serão unicamente avaliados pela nota, ir bem na prova adquire a verdadeira importância do curso, e entre ir bem numa prova e assimilar o conteúdo há uma distância imensa. Freqüentemente ouço ‘o importante é passar, não aprender’. Não se aprende e se passa, se aprende a passar, se aprende a decorar, e finalmente se aprende a colar.
Portanto são verdadeiramente parciais todas as tentativas de avaliação por nota baseada em provas em um curso de engenharia. É feito porque é um critério simples do professor administrar e nossa educação ainda é muito tradicional. Eu pessoalmente sinto-me um pária acadêmico ao saber ser rejeitado para a conquista de bolsas por efeito de notas e reprovações. O grande lamento é que justamente os bons alunos que no atual sistema têm desempenhos excelentes são favorecidos pelo histórico escolar, adquirem bolsas, renome acadêmico, são aceitos por bons orientadores, sobrem a pós-graduação.... e se tornam professores. Que por sua vez não vêem nada errado no sistema com que tiveram sucesso. E todos nós, homens, seguimos a regra de que se para mim está bom, para todos estarão. Muitas vezes vejo professores sem compreender a incompreensão dos alunos, ou cobrando o mesmo rigor e disciplina no estudo que tiveram quando jovens, esquecendo que estas virtudes excepcionais talvez não sejam comuns a todos. E estes professores lideram as universidades, decidem currículos, avaliam pedido de bolsas e aceitam orientados com seu perfil, e por este perfil próprio pautam seu rigor, dando aulas e provas não para o nível da média dos alunos, mas para o seu alto nível de compreensão. Este efeito provoca uma seleção natural que distancia a expectativa dos docentes da média dos alunos. Este efeito é tanto mais sentido pelo fato de que o vestibular está a cada ano mais concorrido e exigente, triando com mais rigor os candidatos à universidade, e misteriosamente o número de reprovações dentro das faculdades aumenta. Ou podemos acreditar não sem fina ironia que os alunos estão emburrecendo a cada geração e que os professores são os últimos guardiões do saber incompreendidos no seu baldo afã de manter o bom rigor acadêmico dos bárbaros.
Posso parecer um jacobino rancoroso e ginasial numa ridícula tentativa de conjurar as frustrações dos alunos sobre os professores. Não! Porém devemos ter em mente que grande parte da responsabilidade dos atuais problemas dos cursos de graduação nas universidades vem de quem tem o poder de decidir sobre eles, o que com certeza não é o caso dos alunos.
E a cola nosso tema? A cola justamente é um subterfúgio para içar os alunos normais até poderem competir contra essa expectativa demasiadamente alta de cobrança.
Claro que este processo não opera conscientemente. Vai haver cola mesmo com avaliações adequadas, apesar que dificilmente um aluno seguro da suficiência de seu conhecimento se arrisca a colar. Porque ameaçar uma justa nota que seguramente obtida por um método seguro?
Contudo é uma discussão pedagógica maior.
A cola que une os alunos
A princípio, devemos distinguir dois tipos de cola. A primeira é a cola individual, o aluno arranja algum método pessoal de consulta a livros e apontamentos durante o teste quando não são permitidos. A segunda é quando um aluno passa a resposta a outro. Esta última verdadeiramente é uma instituição da amizade. Há um lado humano muito profundo na cola que não podemos subestimar. A cola é solidariedade gratuita. Amizades se forjam nas provas como os soldados que militam juntos na mesma guerra.
Os alunos que guardam as soluções apenas para si são tidos como egoístas. Porque todos são colegas de cruz, aquele que passa a cola sabe que em nada vai ser prejudicado ao ajudar o outro. Casos de anulação mútua de prova por respostas iguais são raros e só ocorrem em caso extremamente explícito, até porque a maioria dos exercícios tem apenas uma resposta. Portanto, salvo uma timidez paralisante, não há desculpas para sonegar ajuda aos colegas. Penso que a índole de cada um se vê refletida nestas pequenas atitudes. Mesquinhez nas pequenas ajudas na faculdade, mesquinhez nos grandes desafios profissionais. As virtudes da caridade e gratidão são tão mais estimuladas quando se sabe que o emissor da cola arriscou-se para passar as suas respostas. Esta cumplicidade entre os alunos enobrece.
Os alunos detestam quem recebe cola e não passa por razões óbvias de egoísmo. Há ainda uma variante, é aquele que recebe a cola, julga-a errada e não passa aos demais, usualmente desesperados por não deixar os exercícios em branco preferindo uma resposta meio errada a nada. Sempre me perguntei porque esses “fiscais das colas” juizes do certo e errado não tiram notas máximas nas suas provas mas arbitram o que é melhor nas provas dos outros.
Por sua vez sempre existem os parasitas interesseiros. Usualmente no tempo que antecede a prova, aqueles bons alunos tímidos e insociáveis vêem-se cheios de leais amigos. Ninguém pode ser acusado de egoísta ao não passar cola aos que notadamente em nada colaboram nos trabalhos e relatórios. A cola supre deficiências momentâneas de alunos esforçados, mas falíveis, e não carrapatos acadêmicos.
Conclui-se que a cola torna-se um imenso laboratório onde se pode avaliar o caráter dos colegas para a futura vida profissional. Na necessidade percebe-se a índole de cada um e, como na universidade não há tantas situações adversas onde as pessoas podem se testar, são nas provas, trabalhos e seminários que darão elementos para nossa confiança... ou falta dela.
Truques clássicos
Há também a emoção de colar. Um sutil duelo de psicologia entre os alunos e o professor se passa a cada prova. Discutir cola sem passar os olhos pelos seus estratagemas é como estar num buffet e não avançar sobre os canapés.
Os alunos estão em vantagem pelo seu grande número. Por outro lado, o professor presidente é móvel e tem a autoridade final em caso de pegar alguém. Vários fatores conspiram contra os alunos: A visão insuficiente (quem cola sabendo que o professor está por trás?), o medo (que em nossa imaginação faz do professor onipresente para detectar nossos menores movimentos), os ruídos que denunciam a passagem de uma folha, e os cachorros de castelo, monitores pós-graduandos que alguns professores trazem consigo para intimidar (e também humilhar um pouquinho os alunos pela suspeita). A dificuldade de colar cresce na ordem do quadrado do número de cachorros de castelo presentes menos a extensão e a densidade de distribuição dos alunos na sala.
Há muitas regras clássicas, aluno que olha para o professor quer colar (quem está fazendo a prova nem tem tempo de olhar em volta). Por outro lado, a atenção humana só dura nos primeiros trinta minutos, então quem espera colar que tenha um pouco de paciência, até para que os colegas tenham tempo de resolver. Alunos que ficam sem fazer nada usualmente estão esperando cola chegar. Tenho visto alunos calculando na mão complexas divisões até a vigésima casa decimal para estar fingindo resolver algo.
O grande momento da cola é quando algum aluno distrai o professor com alguma questão sobre o enunciado. Em cursos grandes onde a relação entre o professor e aluno é impessoal, alunos chamariz já aprovados e desconhecidos podem vir a fazer a prova para sistematicamente ter atitudes suspeitas de cola. A atenção do professor é desviada para o chamariz e a cola do resto da sala fica impune. Apesar da ardilosidade da idéia, se uma turma já é capaz de ter nível de organização para combinar esta tática, verdadeiramente já está apta a organizar projetos complexos de engenharia.
Em verdade, tenho visto que sempre é possível descobrir alunos colando, e um professor realmente chato pode inibir bastante pelo terror. Usar óculos de sol, sentar-se no fundo da sala sobre as carteiras, não responder questões do enunciado continuam sendo armas infalíveis. Contudo parece-me uma indignidade um professor universitário impedir tão explicitamente, sendo indulgentes na maioria dos casos que percebem a cola, afinal, são veteranos nela. Usualmente os professores têm o bom senso de tomar providências apenas para os casos mais explícitos. E tomar providências sempre é desgastante.
A cola individual também tem expressões de criatividade imensa na capacidade de escrever o máximo em espaços mínimos. Papeizinhos escondidos no estojo, nos bolsos, embaixo da folha de questões, naquela jaqueta displicentemente deixada sobre as pernas... A cola tipo pergaminho, uma longa fitinha de exercícios enrolada num palito, requer destreza na manipulação, mas maximiza a capacidade por espaço. E quem nunca ‘esqueceu’ uma apostila ou livro aberto debaixo da carteira a frente?
Contudo nada é tão sofisticado e comum como a cola nas calculadoras. As calculadoras alfanuméricas possuem memória que podem facilmente armazenar textos e matéria. Com um pouco de paciência, ou com programas que convertem texto de micros para a calculadora, é possível que os alunos façam provas com acesso a seus próprios resumos da matéria. E a maioria dos alunos tem calculadoras deste tipo.
Daí verdadeiramente antes das provas é visto uma aula de reprodução binária digna das melhores bactérias: Uma calculadora carregada copia seus dados para outra, estas duas para quatro, quatro para oito, e assim vai... Algo que pessoalmente considero uma injustiça: A descoberta de uma tira de papel com meia dúzia de fórmulas pode zerar sua prova, mas kilobytes e kilobytes de dados na calculadora ficam impunes.
A “Perda de Carga” na cola
A princípio pode parecer que esteja fazendo um panegírico da cola. Contudo para encerrar permitam-me partilhar um episódio em que me vi envolvido e com dados experimentais cimentou a opinião que atualmente faço sobre o assunto.
A cola possui uma perda de carga. Assim como um fluido perde pressão pelo atrito ao se deslocar numa tubulação, a cola perde potencial de nota ao ser transferida de uma prova a outra. Por quê? Os veículos de transmissão da cola são limitados, e a necessidade de uma pequena área no papel transferido entre os alunos limita o detalhamento da resolução. Quem escreve, não escreve tudo, e quem copia, nem sempre copia direito ou entende o que está escrito. Uma série de ‘indentações’ para explicar o desenvolvimento da questão são removidos ao se fazer a cola, atendo-se o essencial. A falta destes guias, a questão colada torna-se obscura, perdendo pontos. A cola muitas vezes se reduz apenas a valores e equações essenciais, quando não ocorrem ‘mutações’, valores errados copiados às pressas.
Aconteceu numa prova de trocadores de calor. A Musa das operações unitárias me sorriu e estava conseguindo fazer na certeza todos os exercícios. Nada mais justo que partilhar as boas graças com meus colegas. Escrevi os exercícios numa folha de papel estratégica que carregava comigo e passei para trás. Meu amigo que recebeu garantiu que copiou exatamente o que escrevi.
Algumas semanas depois saíram as notas. Eu tirei uma nota boa, enquanto meu amigo foi muito mal. Pedi para revisar minha prova e sutilmente abri a prova de meu amigo para compará-la a minha. Queria saber como exercícios iguais tinham tido notas tão extremas. Já estava me revoltando, colecionando mais aquele episódio para a minha vasta coletânea mental de arbitrariedades dos professores, quando notei uma sutileza de diferença. Muitas passagens estavam saltadas. Valores que havia declarado como supostos, na prova copiada estavam sem identificação de como foram obtidos, dando a impressão que foram calculados... e vice versa também. Uma passagem em especial me chamou a atenção: O problema pedia o cálculo do valor de hio, coeficiente de troca térmica nos tubos. Porém meu amigo havia escrito ho. Ora, a princípio não há muita diferença para olhos leigos, mas para as sutilezas da arte da troca térmica, hio e ho são tão semelhantes e diferentes quanto as axilas são das virilhas. Hio é o coeficiente para os tubos, e ho para o casco. Grandezas em posições bem diferentes, cuja confusão é imperdoável.
Quem errou ao copiar, eu ou ele? Não importa. A questão não obteve nota. E comigo eu me perguntava como ele não havia percebido aquele erro tão crasso. Verdadeiramente meu amigo não sabia muito. Até porque dava para perceber a diferença entre hio e ho quem tivesse uma noção de como é um trocador de calor. Se soubesse um pouco, não teria errado.
Ou seja, a cola auxilia quem sabe. Não mascara incapacidades. O incapaz não consegue nem entender nada. Várias vezes me peguei com fórmulas e valores do qual não tinha noção alguma e de nada resolvera. Não deixa de ser irônico concluir que a cola existe para o aluno comum, não para o ´mau aluno´. Conclusão inesperada e polêmica que derruba mais uma lenda da mitologia escolar. A cola perde portanto a conotação de fraude e se torna aquela valiosa auxiliar da limitada capacidade de aprendizado de pessoas comuns. Contudo estou certo de que o tema ainda está longe de ser esgotado e quaisquer conclusões são parciais. Portanto é justo que haja preocupação com ele.
Apesar de tudo que possa pensar e discorrer, pessoalmente me fica no final aquela pergunta odiosa:
Vale a pena colar, é lícito colar?
Fica sem resposta. Não se sabe se vale ou se é lícito, mas o fato indiscutível é que se cola. E aqueles que realmente têm algum poder de mudança sobre os cursos deveriam analisar este dado experimental sem romantismo e hipocrisia.
A cola é uma daquelas práticas amplamente disseminadas, mas cuja importância é esquecida e não levada em conta. Sem dúvida é um assunto ingrato, freqüentemente vemos moralistas se levantarem e inibir a discussão franca com sofismas de uma educação ideal. Contudo não podemos tratar como um tabu e tentarmos esconder de nós mesmos os motivos que levam à cola dentro das faculdades, motivos sérios que contestam muitos conceitos tradicionais ainda aplicados à educação superior.
A grande questão que se levanta é: A cola afeta a formação do aluno, mascarando sua incapacidade e produzindo um mau profissional, no caso um engenheiro químico inadequado para o exercício de sua arte?
A luz dos meus seis anos de curso de engenharia química posso me arriscar a conjecturar algumas causas. Neste breve ensaio, tento analisar as causas da cola, a economia de cola entre os alunos, as táticas e por fim, a conclusão que tirei da minha experiência. numa contribuição generalizada, empírica e não sistemática para o início de uma discussão mais ampla.
A moralidade intrínseca da Cola: o descrédito das provas
Estou plenamente convencido de que a cola tanto aumenta quanto maior é o descrédito do aluno pela prova. A cola justamente contesta o sistema de avaliação de provas, sobre o qual debruça-se grande parte de nosso ensino. A prova é uma avaliação das capacidades individuais do aluno entregue aos seus próprios conhecimentos. A cola perverte essa avaliação, suprindo o aluno por outras fontes.
O aluno já sabe que a carreira de engenheiro é imensamente diferente de uma prova, daí seu ceticismo. Um problema real não possui nem sequer a sombra de semelhança com uma avaliação de faculdade. O engenheiro trabalha em equipe, possui a sua disposição consulta a literatura, estará livre para pensar em várias soluções, e sempre haverá revisões de seu trabalho final. Sua ferramenta é a capacidade de análise, não a memória. Em contrapartida, o ambiente de uma prova é artificial: Ser cobrado em duas horas a fazer manipulações complexas e específicas de matérias extensas, enclausurado e incomunicável preso numa carteira nem sempre confortável sob a vigilância de alguém pronto a suspeitar de seus menores movimentos. E a correção posterior não é mais justa, pressupõe a pergunta: “O aluno teve capacidade de guardar (não importa se decorado e memorizado ou aprendido e assimilado) a resolução destes n exercícios dos quais uma fração nem sempre amostral lhe será cobrada totalizando um índice de desempenho de 0 a 10?”.
Essa contestação vem desde o estudo. “Estudar para a prova” é uma grande elocubração, verdadeiramente forçar nos dias que antecedem o teste conhecimento no cérebro para demonstrá-lo na prova. Depois, se algo não for esquecido, tanto maior o lucro. E a isto se chama aprendizado. Verdadeiramente uma osmose reversa, usa-se uma pressão artificial e mecânica para fazer algum conhecimento penetrar na mente quando o contrário é o natural. Se permitem uma experiência minha, não me lembro de haver aprendido menos nas matérias sem prova (cuja avaliação era feita pela presença e trabalhos, com eventualmente alguma breve provinha) do que nas exaustivas sessões de esgotamento e desestímulo que antecediam a grandes provas de disciplinas pesadíssimas.
Daí ser a cola um assunto tão espinhoso. Porque invariavelmente quem cola já está tendo um juízo de valores sobre o modo de avaliação de uma prova. Verdadeiramente o aluno que cola tem certeza de que em nada seu desempenho profissional será afetado por fraudar sua performance numa prova. Pelo contrário, um exercício mal estudado ou um esquecimento por nervosismo pode causar uma reprovação numa disciplina chave (seja por efeito de pré-requisito, ou conflito de horários) e efetivamente atrasar uma colação de grau, realmente provocando sérios prejuízos profissionais. Não é nobreza nenhuma perder um precioso ano de carreira por um falso pudor em não colar.
Por outro lado, verdadeiramente um sistema de avaliação baseado meramente em notas estimula o vale-tudo nas provas, daí a cola. Um ciclo do qual a cola é conseqüência dupla: para quem não acredita que a avaliação funcione, a cola engana uma avaliação enganadora, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Pelo contrário, para quem acredita que seus méritos serão unicamente avaliados pela nota, ir bem na prova adquire a verdadeira importância do curso, e entre ir bem numa prova e assimilar o conteúdo há uma distância imensa. Freqüentemente ouço ‘o importante é passar, não aprender’. Não se aprende e se passa, se aprende a passar, se aprende a decorar, e finalmente se aprende a colar.
Portanto são verdadeiramente parciais todas as tentativas de avaliação por nota baseada em provas em um curso de engenharia. É feito porque é um critério simples do professor administrar e nossa educação ainda é muito tradicional. Eu pessoalmente sinto-me um pária acadêmico ao saber ser rejeitado para a conquista de bolsas por efeito de notas e reprovações. O grande lamento é que justamente os bons alunos que no atual sistema têm desempenhos excelentes são favorecidos pelo histórico escolar, adquirem bolsas, renome acadêmico, são aceitos por bons orientadores, sobrem a pós-graduação.... e se tornam professores. Que por sua vez não vêem nada errado no sistema com que tiveram sucesso. E todos nós, homens, seguimos a regra de que se para mim está bom, para todos estarão. Muitas vezes vejo professores sem compreender a incompreensão dos alunos, ou cobrando o mesmo rigor e disciplina no estudo que tiveram quando jovens, esquecendo que estas virtudes excepcionais talvez não sejam comuns a todos. E estes professores lideram as universidades, decidem currículos, avaliam pedido de bolsas e aceitam orientados com seu perfil, e por este perfil próprio pautam seu rigor, dando aulas e provas não para o nível da média dos alunos, mas para o seu alto nível de compreensão. Este efeito provoca uma seleção natural que distancia a expectativa dos docentes da média dos alunos. Este efeito é tanto mais sentido pelo fato de que o vestibular está a cada ano mais concorrido e exigente, triando com mais rigor os candidatos à universidade, e misteriosamente o número de reprovações dentro das faculdades aumenta. Ou podemos acreditar não sem fina ironia que os alunos estão emburrecendo a cada geração e que os professores são os últimos guardiões do saber incompreendidos no seu baldo afã de manter o bom rigor acadêmico dos bárbaros.
Posso parecer um jacobino rancoroso e ginasial numa ridícula tentativa de conjurar as frustrações dos alunos sobre os professores. Não! Porém devemos ter em mente que grande parte da responsabilidade dos atuais problemas dos cursos de graduação nas universidades vem de quem tem o poder de decidir sobre eles, o que com certeza não é o caso dos alunos.
E a cola nosso tema? A cola justamente é um subterfúgio para içar os alunos normais até poderem competir contra essa expectativa demasiadamente alta de cobrança.
Claro que este processo não opera conscientemente. Vai haver cola mesmo com avaliações adequadas, apesar que dificilmente um aluno seguro da suficiência de seu conhecimento se arrisca a colar. Porque ameaçar uma justa nota que seguramente obtida por um método seguro?
Contudo é uma discussão pedagógica maior.
A cola que une os alunos
A princípio, devemos distinguir dois tipos de cola. A primeira é a cola individual, o aluno arranja algum método pessoal de consulta a livros e apontamentos durante o teste quando não são permitidos. A segunda é quando um aluno passa a resposta a outro. Esta última verdadeiramente é uma instituição da amizade. Há um lado humano muito profundo na cola que não podemos subestimar. A cola é solidariedade gratuita. Amizades se forjam nas provas como os soldados que militam juntos na mesma guerra.
Os alunos que guardam as soluções apenas para si são tidos como egoístas. Porque todos são colegas de cruz, aquele que passa a cola sabe que em nada vai ser prejudicado ao ajudar o outro. Casos de anulação mútua de prova por respostas iguais são raros e só ocorrem em caso extremamente explícito, até porque a maioria dos exercícios tem apenas uma resposta. Portanto, salvo uma timidez paralisante, não há desculpas para sonegar ajuda aos colegas. Penso que a índole de cada um se vê refletida nestas pequenas atitudes. Mesquinhez nas pequenas ajudas na faculdade, mesquinhez nos grandes desafios profissionais. As virtudes da caridade e gratidão são tão mais estimuladas quando se sabe que o emissor da cola arriscou-se para passar as suas respostas. Esta cumplicidade entre os alunos enobrece.
Os alunos detestam quem recebe cola e não passa por razões óbvias de egoísmo. Há ainda uma variante, é aquele que recebe a cola, julga-a errada e não passa aos demais, usualmente desesperados por não deixar os exercícios em branco preferindo uma resposta meio errada a nada. Sempre me perguntei porque esses “fiscais das colas” juizes do certo e errado não tiram notas máximas nas suas provas mas arbitram o que é melhor nas provas dos outros.
Por sua vez sempre existem os parasitas interesseiros. Usualmente no tempo que antecede a prova, aqueles bons alunos tímidos e insociáveis vêem-se cheios de leais amigos. Ninguém pode ser acusado de egoísta ao não passar cola aos que notadamente em nada colaboram nos trabalhos e relatórios. A cola supre deficiências momentâneas de alunos esforçados, mas falíveis, e não carrapatos acadêmicos.
Conclui-se que a cola torna-se um imenso laboratório onde se pode avaliar o caráter dos colegas para a futura vida profissional. Na necessidade percebe-se a índole de cada um e, como na universidade não há tantas situações adversas onde as pessoas podem se testar, são nas provas, trabalhos e seminários que darão elementos para nossa confiança... ou falta dela.
Truques clássicos
Há também a emoção de colar. Um sutil duelo de psicologia entre os alunos e o professor se passa a cada prova. Discutir cola sem passar os olhos pelos seus estratagemas é como estar num buffet e não avançar sobre os canapés.
Os alunos estão em vantagem pelo seu grande número. Por outro lado, o professor presidente é móvel e tem a autoridade final em caso de pegar alguém. Vários fatores conspiram contra os alunos: A visão insuficiente (quem cola sabendo que o professor está por trás?), o medo (que em nossa imaginação faz do professor onipresente para detectar nossos menores movimentos), os ruídos que denunciam a passagem de uma folha, e os cachorros de castelo, monitores pós-graduandos que alguns professores trazem consigo para intimidar (e também humilhar um pouquinho os alunos pela suspeita). A dificuldade de colar cresce na ordem do quadrado do número de cachorros de castelo presentes menos a extensão e a densidade de distribuição dos alunos na sala.
Há muitas regras clássicas, aluno que olha para o professor quer colar (quem está fazendo a prova nem tem tempo de olhar em volta). Por outro lado, a atenção humana só dura nos primeiros trinta minutos, então quem espera colar que tenha um pouco de paciência, até para que os colegas tenham tempo de resolver. Alunos que ficam sem fazer nada usualmente estão esperando cola chegar. Tenho visto alunos calculando na mão complexas divisões até a vigésima casa decimal para estar fingindo resolver algo.
O grande momento da cola é quando algum aluno distrai o professor com alguma questão sobre o enunciado. Em cursos grandes onde a relação entre o professor e aluno é impessoal, alunos chamariz já aprovados e desconhecidos podem vir a fazer a prova para sistematicamente ter atitudes suspeitas de cola. A atenção do professor é desviada para o chamariz e a cola do resto da sala fica impune. Apesar da ardilosidade da idéia, se uma turma já é capaz de ter nível de organização para combinar esta tática, verdadeiramente já está apta a organizar projetos complexos de engenharia.
Em verdade, tenho visto que sempre é possível descobrir alunos colando, e um professor realmente chato pode inibir bastante pelo terror. Usar óculos de sol, sentar-se no fundo da sala sobre as carteiras, não responder questões do enunciado continuam sendo armas infalíveis. Contudo parece-me uma indignidade um professor universitário impedir tão explicitamente, sendo indulgentes na maioria dos casos que percebem a cola, afinal, são veteranos nela. Usualmente os professores têm o bom senso de tomar providências apenas para os casos mais explícitos. E tomar providências sempre é desgastante.
A cola individual também tem expressões de criatividade imensa na capacidade de escrever o máximo em espaços mínimos. Papeizinhos escondidos no estojo, nos bolsos, embaixo da folha de questões, naquela jaqueta displicentemente deixada sobre as pernas... A cola tipo pergaminho, uma longa fitinha de exercícios enrolada num palito, requer destreza na manipulação, mas maximiza a capacidade por espaço. E quem nunca ‘esqueceu’ uma apostila ou livro aberto debaixo da carteira a frente?
Contudo nada é tão sofisticado e comum como a cola nas calculadoras. As calculadoras alfanuméricas possuem memória que podem facilmente armazenar textos e matéria. Com um pouco de paciência, ou com programas que convertem texto de micros para a calculadora, é possível que os alunos façam provas com acesso a seus próprios resumos da matéria. E a maioria dos alunos tem calculadoras deste tipo.
Daí verdadeiramente antes das provas é visto uma aula de reprodução binária digna das melhores bactérias: Uma calculadora carregada copia seus dados para outra, estas duas para quatro, quatro para oito, e assim vai... Algo que pessoalmente considero uma injustiça: A descoberta de uma tira de papel com meia dúzia de fórmulas pode zerar sua prova, mas kilobytes e kilobytes de dados na calculadora ficam impunes.
A “Perda de Carga” na cola
A princípio pode parecer que esteja fazendo um panegírico da cola. Contudo para encerrar permitam-me partilhar um episódio em que me vi envolvido e com dados experimentais cimentou a opinião que atualmente faço sobre o assunto.
A cola possui uma perda de carga. Assim como um fluido perde pressão pelo atrito ao se deslocar numa tubulação, a cola perde potencial de nota ao ser transferida de uma prova a outra. Por quê? Os veículos de transmissão da cola são limitados, e a necessidade de uma pequena área no papel transferido entre os alunos limita o detalhamento da resolução. Quem escreve, não escreve tudo, e quem copia, nem sempre copia direito ou entende o que está escrito. Uma série de ‘indentações’ para explicar o desenvolvimento da questão são removidos ao se fazer a cola, atendo-se o essencial. A falta destes guias, a questão colada torna-se obscura, perdendo pontos. A cola muitas vezes se reduz apenas a valores e equações essenciais, quando não ocorrem ‘mutações’, valores errados copiados às pressas.
Aconteceu numa prova de trocadores de calor. A Musa das operações unitárias me sorriu e estava conseguindo fazer na certeza todos os exercícios. Nada mais justo que partilhar as boas graças com meus colegas. Escrevi os exercícios numa folha de papel estratégica que carregava comigo e passei para trás. Meu amigo que recebeu garantiu que copiou exatamente o que escrevi.
Algumas semanas depois saíram as notas. Eu tirei uma nota boa, enquanto meu amigo foi muito mal. Pedi para revisar minha prova e sutilmente abri a prova de meu amigo para compará-la a minha. Queria saber como exercícios iguais tinham tido notas tão extremas. Já estava me revoltando, colecionando mais aquele episódio para a minha vasta coletânea mental de arbitrariedades dos professores, quando notei uma sutileza de diferença. Muitas passagens estavam saltadas. Valores que havia declarado como supostos, na prova copiada estavam sem identificação de como foram obtidos, dando a impressão que foram calculados... e vice versa também. Uma passagem em especial me chamou a atenção: O problema pedia o cálculo do valor de hio, coeficiente de troca térmica nos tubos. Porém meu amigo havia escrito ho. Ora, a princípio não há muita diferença para olhos leigos, mas para as sutilezas da arte da troca térmica, hio e ho são tão semelhantes e diferentes quanto as axilas são das virilhas. Hio é o coeficiente para os tubos, e ho para o casco. Grandezas em posições bem diferentes, cuja confusão é imperdoável.
Quem errou ao copiar, eu ou ele? Não importa. A questão não obteve nota. E comigo eu me perguntava como ele não havia percebido aquele erro tão crasso. Verdadeiramente meu amigo não sabia muito. Até porque dava para perceber a diferença entre hio e ho quem tivesse uma noção de como é um trocador de calor. Se soubesse um pouco, não teria errado.
Ou seja, a cola auxilia quem sabe. Não mascara incapacidades. O incapaz não consegue nem entender nada. Várias vezes me peguei com fórmulas e valores do qual não tinha noção alguma e de nada resolvera. Não deixa de ser irônico concluir que a cola existe para o aluno comum, não para o ´mau aluno´. Conclusão inesperada e polêmica que derruba mais uma lenda da mitologia escolar. A cola perde portanto a conotação de fraude e se torna aquela valiosa auxiliar da limitada capacidade de aprendizado de pessoas comuns. Contudo estou certo de que o tema ainda está longe de ser esgotado e quaisquer conclusões são parciais. Portanto é justo que haja preocupação com ele.
Apesar de tudo que possa pensar e discorrer, pessoalmente me fica no final aquela pergunta odiosa:
Vale a pena colar, é lícito colar?
Fica sem resposta. Não se sabe se vale ou se é lícito, mas o fato indiscutível é que se cola. E aqueles que realmente têm algum poder de mudança sobre os cursos deveriam analisar este dado experimental sem romantismo e hipocrisia.