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#966321 Ensaio de David Hume

Um benefício considerável que surge da filosofia consiste no antídoto soberano que esta fornece para a superstição e falsa religião. Todos os outros remédios para esta pestilenta doença são inúteis, ou pelo menos incertos. O simples bom senso e a experiência de vida, que são suficientes para a maior parte dos propósitos da vida, aqui revelam-se ineficazes: a história, bem como a experiência quotidiana, fornecem exemplos de homens dotados com a mais forte capacidade para negócios e afazeres que vivem escravizados pela maior superstição. Mesmo a graciosidade e a delicadeza de temperamento, que infunde um bálsamo em qualquer outra ferida, não fornece qualquer remédio para um veneno tão virulento, como se pode afirmar particularmente do belo sexo que, embora possua geralmente estas ricas dádivas da natureza, vê muitas das suas alegrias serem destruídas por este intruso inoportuno. Mas, logo que a sã filosofia se apodera da mente, a superstição é eficazmente excluída; e pode-se afirmar razoavelmente que o seu triunfo sobre este inimigo é mais completo que sobre a maior parte dos vícios e imperfeições próprios da natureza humana. O amor ou a ira, a ambição ou a avareza, têm a sua raiz no temperamento e nas afeições, coisas que a mais sã razão quase nunca é capaz de corrigir inteiramente; mas a superstição, estando baseada na falsa opinião, tem de cessar imediatamente quando a verdadeira filosofia inspira sentimentos mais justos de poderes superiores. Aqui a luta entre a doença e o remédio é mais equilibrada; e, a não ser que o segundo seja falso e enganador, nada o pode impedir de ser eficiente.


Seria aqui supérfluo exaltar os méritos da filosofia, expondo a tendência perniciosa do vício do qual esta cura a mente humana. O homem supersticioso, diz Túlio[1], é miserável em qualquer situação, em qualquer incidente da vida. Mesmo o próprio sono, que bane todas as outras preocupações dos infelizes mortais, fornece-lhe matéria para novos terrores enquanto examina os seus sonhos e encontra nessas visões nocturnas presságios de futuras calamidades. Posso acrescentar que, embora só a morte possa pôr fim à sua miséria, ele não se atreve a procurar esse refúgio; prolonga uma existência miserável, pois tem um receio infundado de ofender o seu criador usando o poder com o qual esse ser beneficente o dotou. As dádivas de Deus e da Natureza são-nos arrebatadas por esta inimiga cruel; e, embora esse passo nos retirasse das regiões da dor e da mágoa, as suas ameaças ainda nos acorrentam a um ser odiado, que sobretudo ela própria contribui para tornar miserável.


Aqueles que foram reduzidos pelas calamidades da vida à necessidade de empregar este remédio fatal notam que, se a preocupação inoportuna dos seus amigos os priva daquela espécie de morte que propuseram a si próprios, raramente se aventuram a procurar qualquer outra ou conseguem reunir tanta determinação uma segunda vez, de modo a executar o seu propósito. O nosso horror à morte é tão grande que, quando esta se apresenta a um homem sob qualquer forma que não aquela com a qual ele se esforçou por reconciliar a sua imaginação, esta adquire novos terrores e supera a sua débil coragem. Mas, quando as ameaças da superstição se juntam a esta timidez natural, não é surpreendente que esta prive os homens de todo o poder sobre as suas vidas, pois mesmo muitos prazeres e deleites, aos quais somos conduzidos por uma forte propensão, são-nos arrancados por esta tirana desumana. Esforcemo-nos aqui por devolver o homem à sua liberdade nativa, examinando todos os argumentos comuns contra o suicídio e mostrando, de acordo com as opiniões de todos os filósofos antigos, que essa acção pode estar livre de qualquer imputação de culpa ou censura.


Se o suicídio é um crime, tem de ser uma transgressão do nosso dever em relação a Deus, aos nossos semelhantes ou a nós próprios.


De modo a provar que o suicídio não é qualquer transgressão do nosso dever em relação a Deus, as seguintes considerações talvez sejam suficientes. Para governar o mundo material, o criador todo-poderoso estabeleceu leis gerais e imutáveis, pelas quais todos os corpos, do maior planeta à menor partícula de matéria, são mantidos dentro da sua esfera e função próprias. Para governar o mundo animal, ele dotou todas as criaturas vivas com poderes corporais e mentais (com sentidos, paixões, apetites, memória e a capacidade de julgar), pelos quais elas são impelidas ou reguladas no curso da vida para que estão destinadas. Cada um destes dois princípios distintos do mundo material e animal invade continuamente a esfera do outro, e cada um retarda ou apressa a operação do outro. Os poderes do homem e de todos os outros animais estão restringidos e são controlados pela natureza e qualidades dos corpos circundantes; e as modificações e acções destes corpos são incessantemente alteradas pela operação de todos os animais. O homem é detido por rios na sua passagem pela superfície da Terra; e os rios, quando são apropriadamente controlados, emprestam a sua força ao movimento das máquinas, que estão ao serviço do homem. Mas, embora as províncias dos poderes materiais e animais não se mantenham inteiramente separadas, não resulta daí qualquer desacordo ou desordem na criação; pelo contrário, a partir da mistura, união e contraste de todos os diversos poderes dos corpos inanimados e das criaturas vivas, surge essa proporção e harmonia surpreendente que fornece o argumento mais seguro a favor da sabedoria suprema.


A providência da divindade não surge imediatamente em qualquer operação, governando todas as coisas através daquelas leis gerais e imutáveis que estão estabelecidas desde o início do tempo. Todos os acontecimentos, num certo sentido, podem ser manifestações da acção do todo-poderoso; todos procedem daqueles poderes com que ele dotou as suas criaturas. A ruína de uma casa destruída pelas mãos dos homens não resulta menos da sua providência que a ruína de uma casa que cai devido ao seu próprio peso, nem as faculdades humanas resultam menos do seu trabalho que as leis do movimento e da gravitação. Quando as paixões actuam, quando a capacidade de julgar decreta, quando os membros obedecem, estamos sempre perante a operação de Deus; e sobre estes princípios animados, bem como sobre os inanimados, ele estabeleceu o governo do universo.


Qualquer acontecimento tem a mesma importância aos olhos desse Ser infinito, que abarca num relance as regiões mais distantes do espaço e os períodos mais remotos do tempo. Não há qualquer acontecimento, por muito importante que seja para nós, que ele tenha dispensado das leis gerais que governam o universo, ou que tenha reservado singularmente para sua acção e operação imediatas. A revolução dos estados e impérios depende do menor capricho ou paixão de um único homem; e as vidas dos homens são encurtadas ou prolongadas pelo menor acidente do ar ou da dieta, da luz solar ou da tempestade. A natureza ainda mantém o seu progresso e operação; e, se alguma vez as leis gerais são violadas por volições particulares de Deus, isso dá-se de uma maneira que escapa inteiramente à observação humana. Assim como os elementos e outras partes inanimadas da criação desenvolvem a sua acção sem considerar a situação e o interesse particulares dos homens, também os homens estão entregues aos seus próprios juízos e critérios nos vários choques da matéria, e podem utilizar qualquer faculdade com que estejam dotados para providenciar o seu conforto, felicidade ou preservação.


Qual é então o sentido daquele princípio segundo o qual um homem que, cansado da vida e perseguido pela dor e pela miséria, supera com bravura todos os terrores naturais da morte, e realiza a sua fuga dessa situação cruel, segundo o qual um homem, dizia, incorreu na indignação do seu criador, intrometendo-se no ofício da providência divina e perturbando a ordem do universo? Afirmaremos que o todo-poderoso reservou para si próprio, de uma maneira peculiar, a disposição das vidas dos homens, e não submeteu esse acontecimento, como todos os outros, às leis gerais que governam o universo? Isto é claramente falso: as vidas dos homens dependem das mesmas leis que as vidas de todos os outros animais; e estas estão sujeitas às leis gerais da matéria e do movimento. A queda de uma torre ou a infusão de um veneno destruirão um homem da mesma maneira que a criatura mais desprezível; uma inundação varre sem distinção qualquer coisa que fique ao alcance da sua fúria. Por isso, como as vidas dos homens estão para sempre dependentes das leis gerais da matéria e do movimento, será um crime um homem dispor da sua vida por ser sempre um crime interferir nessas leis ou perturbar a sua operação? Mas isto parece absurdo: todos os animais estão entregues à sua própria prudência e aptidão para a sua conduta no mundo, e têm toda a autoridade, até onde vai o seu poder, para alterar as operações da natureza. Sem o exercício desta autoridade, não poderiam subsistir um só momento; qualquer acção, qualquer movimento de um homem, inova a ordem de algumas partes de matéria e desvia do seu curso comum as leis gerais do movimento. Deste modo, juntando estas conclusões descobrimos que a vida humana depende das leis gerais da matéria e do movimento, e que perturbar ou alterar essas leis gerais não é uma intromissão no ofício da providência: não terá cada uma destas afirmações como consequência a livre disposição da própria vida? E não poderá o homem utilizar legitimamente esse poder com que a natureza o dotou?


Para destruir a evidência desta conclusão, temos que apresentar uma razão que mostre por que este caso particular é uma excepção. Será por a vida humana ter uma importância tão grande que dispor dela é presunçoso para a prudência humana? Mas a vida de um homem não tem uma importância maior para o universo que a vida de uma ostra: e, se tiver uma importância tão grande, a verdade é que a ordem da natureza humana submeteu-a efectivamente à prudência humana e reduziu-nos a uma necessidade, em qualquer incidente, de decidir a seu respeito.


Se a disposição da vida humana estivesse tão reservada como a província peculiar do Todo-poderoso que seria uma intromissão nos seus direitos em relação aos homens estes disporem das suas vidas, seria tão criminoso agir para a preservação da vida como para a sua destruição. Se desvio uma pedra que vai cair na minha cabeça, perturbo o curso da natureza e invado a província peculiar do Todo-poderoso, dilatando a minha vida para além do período que, pelas leis gerais da matéria e do movimento, ele lhe atribuiu.


Um cabelo, uma mosca ou um insecto é capaz de destruir este ser poderoso cuja vida é tão importante. Será absurdo supor que a prudência humana pode dispor legitimamente daquilo que depende de tais causas insignificantes? Não seria um crime eu desviar o Nilo ou o Danúbio, se eu fosse capaz de realizar esses propósitos. Onde está então o crime de desviar algumas onças de sangue dos meus canais naturais!


Imaginais que eu me queixo da providência, ou amaldiçoo a minha criação, por ter saído da vida e posto fim a um ser que, se continuasse a existir, tornar-me-ia miserável? Tais sentimentos estão longe de mim. Só estou convencido de uma questão de facto que vós próprios considerais possível: que a vida humana pode ser infeliz, e que a minha existência, caso se prolongasse mais, tornar-se-ia inaceitável. Mas eu agradeço à providência, tanto pelo bem de que já desfrutei como pelo poder de que estou dotado para escapar aos males que me ameaçam.[2] Só podem queixar-se da providência aqueles que tolamente imaginam não ter tal poder, e precisam de prolongar uma vida detestada, apesar de carregada de dor e de doença, de vergonha e de pobreza.


Não ensinais que quando algum mal me sucede, mesmo que resulte da malícia dos meus inimigos, devo resignar-me à providência, e que as acções dos homens, tal como as acções dos seres inanimados, são operações do Todo-poderoso? Assim, quando caio sobre a minha espada recebo a minha morte igualmente das mãos da divindade, como se esta tivesse resultado de um leão, de um precipício ou de uma febre.


A submissão à providência que exigis em qualquer calamidade que me suceda não exclui a perícia e a diligência humanas, se possivelmente através delas puder evitar ou fugir à calamidade. E porque não poderei utilizar tanto um remédio como o outro?


Se a minha vida não fosse minha, seria para mim um crime colocá-la em perigo, bem como dispor dela; e não mereceria ser chamado herói um homem a quem a glória ou a amizade transportasse para os maiores perigos; e outro, que pusesse fim à sua vida por motivos iguais ou semelhantes, mereceria ser acusado de desprezível ou infame.


Não há qualquer ser que possua qualquer poder ou faculdade que não tenha recebido do seu criador; nem há qualquer ser que possa alguma vez, através de uma acção tão irregular, intrometer-se no plano da sua providência ou quebrar a ordem do universo. As operações de um ser são obra do seu criador, tal como a cadeia de eventos que ele invade; e, seja qual for o princípio que prevaleça, podemos concluir por essa mesma razão que esse será aquele que o criador mais favorece. Seja esse ser animado ou inanimado, racional ou irracional, a situação é sempre a mesma: o seu poder ainda deriva do criador supremo, e está abrangido do mesmo modo na ordem da sua providência. Quando o horror à dor prevalece sobre o amor à vida, quando uma acção voluntária antecipa os efeitos de causas cegas, isso só ocorre em consequência daqueles poderes e princípios que ele implantou nas suas criaturas. A providência divina permanece inviolada, situada muito para além do alcance das injúrias humanas.[3]


É ímpio, diz a velha superstição romana, desviar os rios do seu curso ou invadir as prerrogativas da natureza. É ímpio, diz a superstição francesa, inocularmo-nos contra a varíola ou intrometermo-nos nos assuntos da providência, produzindo voluntariamente doenças e enfermidades. É ímpio, diz a moderna superstição europeia, pormos fim à nossa própria vida, e revoltarmo-nos desse modo contra o nosso criador. E porque não há-de ser ímpio, digo eu, construir casas, cultivar o solo ou navegar no oceano? Em todas estas acções utilizamos os nosso poderes da mente e do corpo para produzir alguma inovação no curso da natureza, e em nenhuma delas fazemos mais do que isso. Por isso, todas elas são igualmente inocentes ou igualmente criminosas.


Mas estás colocado pela providência num posto particular, como uma sentinela; e, quando o abandonas sem ser chamado, és igualmente culpado de rebelião contra o teu Soberano Todo-poderoso e incorres no seu desagrado. Pergunto: porque concluís que a providência me colocou neste posto? Pela minha parte, constato que devo o meu nascimento a uma longa cadeia de causas, das quais muitas dependeram de acções voluntárias dos homens. Mas a providência guiou todas essas causas, e nada ocorre no universo sem o seu consentimento e cooperação. Se é assim, então também a minha morte, mesmo que seja voluntária, não ocorre sem o seu consentimento; e sempre que a dor ou a mágoa ultrapassam tanto a minha paciência que me fazem ficar cansado da vida, posso concluir que sou chamado do meu posto nos termos mais claros e explícitos.


Foi certamente a providência que me colocou neste presente momento neste quarto: mas não poderei deixá-lo quando considerar apropriado sem estar sujeito à imputação de ter abandonado o meu posto ou posição? Quando estiver morto, os princípios de que sou composto continuarão a desempenhar o seu papel no universo, e serão tão úteis na grande fábrica como o eram quando compunham esta criatura individual. A diferença para o todo não será maior que a diferença entre eu estar num quarto e estar ao ar livre. A primeira mudança tem mais importância para mim do que a outra, mas não tem mais importância para o universo.


É uma espécie de blasfémia imaginar que qualquer ser criado pode perturbar a ordem do mundo ou invadir os assuntos da providência! Isso supõe que esse ser possui poderes e faculdades que não recebeu do seu criador, e que não estão subordinados ao seu governo e autoridade. Um homem pode perturbar a sociedade, sem dúvida, e incorrer dessa maneira no desagrado do todo-poderoso, mas o governo do mundo está situado muito para além do seu alcance e violência. E como se revela o desagrado do todo-poderoso em relação àquelas acções que perturbam a sociedade? Através de princípios que ele implantou na natureza humana, e que nos inspiram um sentimento de remorso se nós próprios tivermos sido culpados de tais acções, bem como o sentimento de censura e reprovação se alguma vez as observarmos noutros. Examinemos agora, de acordo com o método proposto, se o suicídio é uma acção desse tipo e constitui uma violação do nosso dever em relação ao nosso próximo e à sociedade.


Um homem que se retira da vida não faz qualquer mal à sociedade: só deixa de fazer bem, o que, se é uma injúria, é do género menos grave.


Todas as nossas obrigações de fazer bem à sociedade parecem implicar algo recíproco. Recebo os benefícios da sociedade, e por isso devo promover os seus interesses; mas será que quando me retiro da sociedade posso ficar vinculado por mais tempo?


Mas, mesmo admitindo que as nossas obrigações de fazer o bem são perpétuas, elas têm certamente alguns limites; não estou obrigado a fazer um pequeno bem à sociedade à custa de um grande mal para mim próprio. Por que deverei então prolongar uma existência miserável devido a algum benefício frívolo que o público possa talvez receber de mim? Se por causa da idade e de enfermidades posso abandonar legitimamente qualquer profissão, utilizar todo o meu tempo na luta contra essas calamidades e aliviar tanto quanto possível as misérias da minha vida futura, por que não poderei acabar de uma vez com essas misérias através de uma acção que não é mais prejudicial para a sociedade?


Mas suponha-se que já não está no meu poder promover o interesse do público, suponha-se que sou um fardo para ele, suponha-se que a minha vida impede alguma pessoa de ser muito mais útil para o público: em tais casos, o meu abandono da vida tem de ser não só inocente, mas louvável. E a maior parte das pessoas que permanecem sob qualquer tentação de abandonar a existência estão em alguma situação desse género; aqueles que têm saúde, poder ou autoridade têm geralmente melhores razões para estar em paz com o mundo.


Um homem está envolvido numa conspiração a favor do interesse público, está preso sob suspeita, ameaçado com a tortura, e em virtude da sua fraqueza sabe que o segredo ser-lhe-á extorquido. Poderá alguém assim atender melhor ao interesse público do que pondo um fim rápido a uma vida miserável? Este foi o caso do famoso e bravo Strozzi de Florença.


Além disso, suponha-se que um malfeitor é condenado justamente a uma morte vergonhosa. Poder-se-á imaginar alguma razão para que ele não possa antecipar o seu castigo, e salvar-se de toda a angústia de pensar nas suas terríveis aproximações? Ele não invade mais os assuntos da providência que o magistrado que ordenou a sua execução; e a sua morte voluntária é igualmente vantajosa para a sociedade, que assim se vê livre de um membro pernicioso.


Quem admite que a idade, a doença ou o infortúnio podem transformar a vida num fardo, e torná-la ainda pior que a aniquilação, não pode questionar que o suicídio pode muitas vezes ser consistente com o nosso interesse e com o dever que temos em relação a nós próprios. Acredito que nunca nenhum homem deitou fora a vida enquanto valia a pena mantê-la, pois tal é o nosso horror natural à morte que pequenos motivos nunca serão capazes de nos reconciliar com ela; e embora talvez a situação da saúde ou fortuna de um homem não tenham parecido exigir este remédio, podemos pelo menos estar seguros de que qualquer um que, sem razão aparente, tenha recorrido a ele, estava amaldiçoado com uma depravação ou melancolia de temperamento de tal maneira incurável que tinha de envenenar todo o prazer, e torná-lo igualmente miserável como se estivesse estado tão carregado com o mais doloroso infortúnio.


Se se supõe que o suicídio é um crime, só a cobardia pode impelir-nos para ele. Se não é um crime, tanto a prudência como a coragem devem levar-nos a livrar-nos de vez da existência quando esta se torna um fardo. É só dessa maneira que, então, poderemos ser úteis à sociedade, dando um exemplo que, se fosse imitado, faria qualquer um mantiver a hipótese de ter felicidade na vida e libertá-lo-ia eficazmente de todo o perigo ou miséria.[4]


[1] De Divin. Lib. ii. 72. 150.
[2] Agamus Deo gratias, quod nemo in vita teneri potest. Séneca, Epist. 12.
[3] Tácito, Ann. lib. i. 79.
[4] Seria fácil provar que o suicídio é tão legítimo sob a revelação cristã como o era para os pagãos. Não há um único texto da sagrada escritura que o proíba. A grande e infalível regra de fé e prática que tem de controlar toda a filosofia e raciocínio humanos, deixou-nos neste caso entregues à nossa liberdade natural. De facto, a resignação à Providência é recomendada na sagrada escritura, mas implica submissão só aos males inevitáveis, não àqueles que podem ser remediados através da prudência ou da coragem. Não matarás pretende evidentemente excluir apenas o acto de matar aqueles sobre cujas vidas não temos qualquer autoridade. A prática dos magistrados, que condenam criminosos à morte apesar da letra da lei, mostra claramente que este preceito, tal como a maior parte dos preceitos da sagrada escritura, tem de ser modificado pela razão e pelo senso comum. Mesmo que este mandamento condenasse o suicídio, não teria agora qualquer autoridade, pois toda a lei de Moisés foi abolida excepto na medida em que é estabalecida pela lei da Natureza. E já nos esforçámos por provar que essa lei não proíbe o suicídio. Em todos os casos os cristãos e os pagãos estão precisamente no mesmo nível: Catão e Bruto, Árria e Portia, agiram heroicamente; aqueles que agora imitarem o seu exemplo devem receber os mesmos louvores da posteridade. O poder de cometer suicídio é visto por Plínio como uma vantagem que os homens possuem mesmo em relação à própria Divindade. «Deus non sibi potest mortem consciscere si velit, quod homini dedit optimum in tantis vitæ pœnis.» -- Lib. ii. cap. 5.


Tradução: Pedro Galvão, 2002.